Meu Melhor Amigo: Vivendo e Aprendendo com Tan Ajahn Buddhadasa

Escrito por Santikaro, Bangkok Post, 27 de maio, 2007

A fim de marcar o centésimo aniversário do nascimento de Buddhadasa Bhikkhu, que ocorre hoje, seu antigo discípulo e tradutor rememora os anos preciosos que passou com o grande mestre espiritual da Tailândia

Ajahn Buddhadasa

Em minha avaliação muito pessoal, Ajahn Buddhadasa Bhikkhu foi o mais significativo, criativo e profundo mestre buddhista thailandês dos tempos modernos. É claro, essa perspectiva não é necessariamente neutra ou objetiva. Tive a grande fortuna de viver com ele em Suan Mokkh pelos últimos nove anos finais de sua vida – nove anos que foram os mais significativos da minha. Lá eu vivi de forma a estudar e treinar com ele, uma experiência ricamente inspiradora e feliz.

Cheguei em Suan Mokkh em uma época que um tradutor regular era necessário. Meus anos no Corpo da Paz haviam me equipado para preencher tal função, a qual considero como a maior benção de minha vida. A experiência de ter tido uma exposição impecavelmente profunda do Buddha Dharma através de Tan Ajahn foi uma educação incrível.

Também dirigi retiros mensais de meditação em Suan Mokkh International por muitos anos. Isso se deve grandemente por ter tido acesso regular à orientação de Tan Ajahn, por meio de centenas de horas de discussões de Dhamma, especialmente concernentes à vigilância por meio da respiração. As gravações de tais conversações são meu mais valioso tesouro material.

Neste espaço, gostaria de transmitir algumas das coisas de meu relacionamento com Tan Ajahn que mais foram significativas para mim.

Tudo em termos de Dharma

Tan Ajahn tinha uma habilidade profunda e refinada de ver todas as coisas em termos de Dharma, e isso com um irônico senso de humor. Suas perspectivas sobre o funcionamento da sociedade, a educação das crianças, arte e poesia, tradições e rituais religiosos, prática de meditação, direção de um monastério – tudo isso era fundamentado no Dharma.

Santikaro (sentado no meio, fileira da frente) em uma foto com seu professor Buddhadasa Bhikkhu (esquerda, fileira de três), Phra Panyananda Bhikkhu (direita, fileira da frente) e outros monges em Dawn Kiam onde Santikaro foi abade.

Ao ensinar o Dharma, Tan Ajahn se fundamentava sempre na essência de dukkha (sofrimento) e no fim de dukkha, idappaccayata (condicionalidade) e no Dharma como dever. Logo no início de meu treinamento, ele me aconselhou a memorizar as palavras do Buddha que diziam: “Agora, tanto quanto no passado, ensino apenas dukkha e o completo arrefecimento de dukkha“. Que maneira maravilhosamente simples e direta de se lembrar do que realmente é importante! Apesar de não ter ainda chegado ao fundo de dukkha, tenho feito progresso e por isso tenho uma tremenda dívida para com ele.

Ele nos incentivava a sempre considerar as coisas à luz de idappaccayata. Todas as coisas surgem, fazem sua dança no estágio do mundo, e passam devido a causas e condições; por sua vez, elas são causas e condições para outras coisas. Esse fluxo de condicionalidade é o que chamamos de vida, universo ou verdade. Essa visão libertadora me ajudou a escapar das tendências de um pensamento do tipo preto e branco, culpando aos outros pelos problemas e egoísmo, ajudando-me a desenvolver um sentido maior da existência mútua dos seres no samsara (o ciclo sem fim de nascimento, sofrimento, morte e renascimento).

No tocante ao estudo do Dharma, Tan Ajahn era um pensador supremamente cuidadoso. Não era suficiente memorizar e repetir os ensinamentos do Buddha; era preciso considerar seu significado, cuidadosa e profundamente. Ele dava grande importância a como usar a linguagem, admitindo que frequentemente ela tornava o entendimento do Dharma mais difícil.

Como seu tradutor, tive muitas oportunidades de discutir não apenas palavras pali, mas as traduções inglesas para elas. Para meu embaraço, com minha graduação em inglês, por vezes ele me sugeria uma tradução que eu zombava inicialmente para no momento seguinte, após consultar o dicionário, perceber que ele compreendia sutilezas da palavra que eu tinha passado por cima.

Ele também nutria uma lealdade com relação aos Suttas em pali digna somente de alguém que houvesse tomado o nome Buddhadasa para si. Tal lealdade era mais profunda que mera aderência às palavras impressas. Ele lia os suttas de forma crítica e com uma mente aberta, sempre inquirindo sobre que palavras tinham que ver com o fim de dukkha. Ele não subscrevia às contradições do Buddhismo Theravada. Ele não se importava em ler e re-ler, e a inquirir quais das tradições e interpretações se encaixavam com os tópicos e temas maiores dos ensinamentos em pali. Quais eram relevantes ao término de dukkha? Compartilhavam do vazio que o Buddha declarara ser parte integrante de seu ensinamento?

Trabalho como Dharma

Para um “Servo do Buddha”, o trabalho é um tema importante. Como Dharma, o trabalho é uma questão de servir à Tríplice Joia ao invés de servir às impurezas comuns da ambição, cobiça ou medo. Quando o trabalho é uma prática espiritual, ele é dever no sentido mais alto da palavra, isto é, ele responde ao Dharma, à realidade da natureza e é nossa natureza como seres humanos. “Dever”, talvez o sentido mais antigo de Dharma, não é aquilo imposto pela tradição religiosa, pressão social ou suborno econômico; ele surge de uma mente alerta com clara visão da realidade a cada momento.

Isto foi e permanece um poderoso desafio para mim – como podemos trabalhar sem nos fixar em objetivos e tarefas? Como podemos deixar passar nosso desejo de sermos produtivos de maneira a impressionar ou ganhar aprovação? Como podemos trabalhar sem ansiedade? Como podemos equilibrar o trabalho com as outras necessidades de nossa vida? Como podemos trabalhar sem tornar o trabalho um projeto do ego? E ainda mais crucialmente, como nos aproximamos do trabalho como divertimento?

Sanuk é uma maravilhosa palavra tailandesa. Tal como eu a entendo, sanuk expressa um sentido de que qualquer coisa que valha a pena ser feita deve ser feita com prazer. Esta é uma arte cultural que Tan Ajahn expressou, tanto para lembrar aos tailandeses de sua herança em face ao capitalismo selvagem, e também para proteger o trabalho da escravidão dos salários. Assim, hoje, enquanto ensino nos EUA e trabalho no Liberation Park, um refúgio rural do Dharma, inpirado por Suan Mokkh, eu trago à lembrança suas palavras para que nos lembremos de desfrutar aquilo que estamos fazendo, a parar e repensar quando nos encontramos sob pressão, estressados ou insatisfeitos. Lembramo-nos dos ensinamentos de Tan Ajahn e nos lembramos que trabalho é Dharma, é dever natural. Trabalho e Dharma não precisam se confrontar um ao outro; o trabalho é como navegamos no mundo com o suporte da libertação, ambos inseridos e provenientes do mesmo mundo.

Dharma como princípio natural

Houve tempos em Suan Mokkh quando me irritava e incomodava com o comportamento de outros estrangeiros, de turistas e viajantes os quais eu julgava ignorantes ou inconscientes quanto às sutilezas da cultura tailandesa. Minha resposta imediata era de que: “precisamos estabelecer regras para tais pessoas“. De tempos em tempos eu me aproximava de Tan Ajahn com uma proposta desta ou daquela regra. Inevitavelmente ele sorria, usualmente não dizia muito, algumas vezes ria, mas nunca levou seriamente minhas tentativas de estabelecer regras, exceto quando eu era cabeça dura o suficiente para abrir discussões sobre a questão. Então, ele mostrava que estabelecer regras para outros equivalia forçá-los a ser da forma que queríamos que fossem e que isso não seria de ajuda nem para eles nem para nós. Aprendi com ele uma capacidade de relaxar tal rigidez quando mais coisas estavam em jogo.

Ele considerava a bondade e a compaixão em relação aos outros como mais importante que a rigidez sobre o Vinaya (a disciplina monástica). Compreendi tal atitude como sendo bondosa e compassiva em relação aos outros. Embora não fosse descuidado quanto ao Vinaya, ele sabia que monges rígidos não eram monges felizes, nem tampouco bons professores de Dharma. Essa era uma lição de que eu precisava.

Ainda assim, estar relaxado quanto às regras não significava irresponsabilidade ou meramente seguir com o fluxo. Tan Ajahn exemplificou o mais alto sentido de responsabilidade, não apenas para consigo mesmo, mas por sua cultura, seu país e o mundo. O Dharma poderia tomar conta de si mesmo, mas sua expressão na sociedade humana era uma responsabilidade crucial para ele. Tan Ajahn se fixou nos ideais mais elevados, concebendo uma sociedade onde o egoísmo não mais reinaria e o mundo estivesse realmente em paz. Ele não tinha medo em apoiar tais princípios, ainda assim, dava um passo por vez, com humor, humildade e respeito aos outros. Eu me esforço por imitar seu idealismo de pés no chão.

Exemplo de vaziez

Uma vez que tomo Tan Ajahn como meu professor, frequentemente espero que ele me diga o que fazer. Devo aceitar tal convite para palestrar? O que devo traduzir? Quanto devo meditar? Embora sempre estivesse disposto a discutir as opções, ele evitava de tomar decisões por mim. Usualmente ele apenas ria e sugeria que eu crescesse e decidisse por mim mesmo.

Em meus momentos mais imaturos eu trazia a ele não dilemas e decisões, mas uma litania de reclamações ou pedidos para que ele “consertasse” de alguma forma ou outra. Ele nunca se opôs à minha tolice, raiva ou teimosia; pelo contrário, meus vômitos egoístas dispersavam-se em sua não-oposição. Ao invés de amplificar minhas reações em outro espelho egoísta, com ele era como falar com o vazio. Ele se relacionava com tudo em Suan Mokkh dessa maneira. Ele não estava lá para dizer às pessoas o que fazer, ser seu guru ou tornar as coisas melhores. Ao contrário, ele estabelecia um exemplo de maturidade espiritual. Ele se comportava conosco de uma forma que nos desafiava a crescer.

À medida que olho para fotos de Tan Ajahn desde minha morada atual, e relembro aqueles anos maravilhosos, sinto um grande amor pelo melhor amigo que jamais terei um igual. Fui abençoado com muitos amigos maravilhosos, mas Tan Ajahn me proporcionou uma amizade que é mais profunda que qualquer outra. Ainda mais, sua amizade, que era sobre a intimidade com o Dharma, enriqueceu todas as minhas outras amizades. Espero sinceramente poder encontrar formas de manter esse entendimento e experiência do Dharma vivos em nosso mundo, especialmente aqui nos EUA onde há tanto medo, confusão e sofrimento.

Santikaro viveu com Buddhadasa Bhikkhu durante os últimos nove anos da vida de Buddhadasa Bhikkhu e tornou-se seu principal tradutor. Ordenado como bhikkhu Theravada em 1985, Santikaro passou a maior parte de sua vida monástica em Suan Mokkh. Durante seu tempo lá ele dirigiu muitos retiros de meditação, ensinou por toda a Tailândia e dirigiu Dawn Kiam, uma pequena comunidade monástica para estrangeiros. Retornou em 2000 e atualmente reside em Liberation Park, na zona rural de Wisconsin, com sua parceira, Jo Marie. Liberation Park é um pequeno refugio seguindo o modelo de Suan Mokkh.

copyright 2007 tradução de Ricardo Sasaki, para a Comunidade Nalanda,

https://buddhadasa.nalanda.org.br

 

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