Buddha Cariya ~ Os 100 anos

Buddha Cariya “O 100º Aniversário de Buddhadasa Bhikkhu”

Venerável Paisan Visalo

Ajahn Buddhadasa(Nota: o ano de 2006 marca o centenário de nascimento do recentemente falecido (1993) Venerável Buddhadasa Bhikkhu. Várias organizações, incluindo Buddhadasa Sukhsa Group, Sekiyadhamma Group e Wongsanit Ashram, serão anfitriãs de uma série de seminários focados em textos que são obras-primas do Venerável Buddhadasa, chamados de “Dhammakosana Series”, contendo mais de 70 enormes volumes sobre o buddhismo. Este artigo resume a preleção feita pelo Venerável Paisan Visalo no seminário sobre o texto Buddha Cariya, que faz parte da série).

Série de Preleções “O 100º Aniversário de Buddhadasa Bhikkhu”

Usualmente, o ensino do Dhamma é bastante abstrato. Embora seja muito útil, deixe-me lembrar, não nos esqueçamos da expressão do Dhamma na forma de histórias. Histórias, reais ou de ficção, podem inspirar as pessoas a fazer o bem ou a apreender alguma ideia prática. O ensino do Dhamma, quando muito abstrato, só pode comunicar em um nível intelectual. Ao contrário, quando exposto em forma de lendas ou histórias de vida, é poderoso, inspirador e comovente. Histórias também podem verbalizar o inexplicável. Conceitos como “mente”, “natureza última”, “natureza humana”-, etc. podem vir a ser entendidos por meio de um processo de personificação.

O livro “Buddha Cariya”, de Buddhadasa Bhikkhu, quer seja visto como lenda ou fato histórico, invariavelmente exerce influência, pois proporciona um modelo ou exemplo para ser seguido. Eu comecei a ler o “Buddha Cariya” alguns meses antes do 6 de outubro de 1976, data da revolta dos estudantes contra a ditadura e o massacre resultante. Embora eu tenha adotado o caminho buddhista da não violência, fui pego entre uma rivalidade de ideologias esquerdistas e direitistas. Para a ala da esquerda, a não violência só retarda a revolução, enquanto a direita não é muito melhor em suas práticas contra o oponente.

Uma parte do livro fala sobre como o Buddha ganha o coração de seus adversários usando compaixão e não violência. Isto me inspira. Normalmente, quando encontramos pessoas que pensam diferentemente, tendemos a vê-las como inimigas ou rivais. Além disso, se elas tentam nos desafiar, ficamos frustrados e bravos. Buddhadasa pôs uma forte ênfase no fato de que o Buddha nunca teve uma atitude hostil com qualquer um, nem mesmo com aqueles que pretenderam prejudicá-lo.

Em minha própria experiência, fui tocado por muitas histórias. Uma certa história fala sobre quatro jovens meninas que competem em uma corrida. Duas corredoras tomam a liderança, deixando as outras duas para trás. Uma das duas primeiras, acidentalmente tropeça. A outra menina, em vez de continuar, se vira e a ajuda. Ela poderia ter ganho, se continuasse correndo. Claro que uma das duas corredoras que vinham atrás delas ganha a corrida. Mas a menina que ajudou a amiga ganha o coração das pessoas. Ela percebe que ajudar o outro é mais importante do que a vitória, enquanto outros frequentemente percebem da forma oposta. Pregar que ajudar os outros é bom, que compaixão e generosidade amorosa são boas, não é tão poderoso quanto histórias reveladoras. Histórias nos fazem sentir que o Dhamma é de fato uma questão diária.

Há 32 anos, Buddhadasa começou a escrever a primeira parte de “Buddha Cariya” com uma pergunta: o que o Buddha queria dizer para as pessoas? O título “Buddha” tem três significados. Primeiramente, para o tolo ou não instruído, significa imagens de Buddha ou amuletos. Num nível mais elevado, o Buddha é um personagem histórico, o Príncipe Siddhattha Gotama. O terceiro nível é o Buddha em seu significado abstrato. Não se trata de uma pessoa, mas de atributos que fazem de uma pessoa um Buddha, a saber: sabedoria, compaixão e pureza. Sob este foco, Buddha não é algo distante. Qualquer ser humano, depois de cultivar estes atributos, pode se tornar um Buddha. O Buddha mesmo disse que quem vê o Dhamma ou a Lei de Paticcasamuppada vê o Buddha. Isto significa que o Dhamma é o Buddha, e também significa que o Buddha não está distante de nós, não é um homem que viveu 2500 antes de nós.

O que Buddha quer dizer ou nos indicar, de acordo com Buddhadasa, pode ser resumido em três aspectos.

Primeiramente, o Buddha é nosso amigo no samsara. Antes do Nibbana, ele era nosso amigo no samsara. Depois do Nibbana, ele ainda é um bom amigo, mostrando-nos o caminho para Lokuttaradhamma.

Nós, pessoas normais que sempre nos vemos como um lótus submerso, não sabemos como podemos alcançar Lokuttaradhamma. O Buddha disse que todos têm um direito à iluminação. Histórias do tempo do Buddha ilustram sua palavra. Alguém que mata como Angulimala, que rouba como Khujjutra, que está em desespero extremo como Kisa Gotami, que é lerdo como Culapanthaka, que é avaro como o filho de Anathapindika, cada um deles tornou-se iluminado de uma certa forma: pessoas de todos os tipos, mesmo aquela que no tempo do Buddha cortou seu pescoço para cometer suicídio, mas que no último segundo atingiu a iluminação. Todas as histórias nos encorajam no sentido de que, com esforço e bons amigos, podemos ser iluminados também. Assim, no segundo aspecto, o Buddha é nosso guia.

Em terceiro lugar, ele é nosso professor. Ele sempre incita-nos a que prestemos atenção ao Dhamma. Uma vez ele expulsou 500 jovens monges que eram muito malcriados e ruidosos. Mas depois reintegrou-os de volta e os ensinou. Ele perguntou então o que Sariputta e Moggallana pensavam sobre sua ação. Sariputta disse que, se o Buddha permanecesse indiferente sobre aquele assunto, ele também seria indiferente e só praticaria para a sua própria felicidade. Mas Moggallana disse que, se o Buddha permanecesse indiferente, ele e Sariputta ajudariam compartilhando o seu fardo. Sua resposta foi apreciada.

É digno de nota que hoje em dia muitos monges adotem a atitude de laissez-faire (não intervenção), como Sariputta, quando problemas surgem. Mas o Buddha nunca concordou com tal postura. Ao contrário, ele encoraja que os seus seguidores empreendam uma ação corretiva.

A próxima parte é o que o Buddha pensa de si mesmo. A principal ideia nesta parte do livro é de fato esta: o Buddha não é alguma coisa . Uma vez houve um brahmana que lhe perguntou o que ele era: ‘Você é uma deidade?’ – ‘Não’. ‘Você é um demônio?’ – ‘Não’. – ‘Você é um homem?’ – ‘Não’. – ‘Então, quem é você?’

Para resumir a resposta do Buddha: ele não é coisa alguma porque o seu kilesa que designaria uma deidade, um demônio ou um homem, foi extinto. E ele diz ao brahmana que podem chamar-lhe despreocupadamente como ‘o Buddha’.

Quase todo o mundo percebe a si mesmo como uma coisa ou outra. Uma vez que tal percepção surge, o nascimento (jati) acontece, seguido por decadência (jara), morte (marana) e sofrimento (dukkha). De fato, não é a percepção do ‘Eu’ somente, mas também um apego que surge juntamente com isso e causa o sofrimento. Podemos dizer que o Buddha supera a questão da identidade porque não coloca valor em ser qualquer coisa, o que é mera verdade convencional e não uma verdade última.

O próximo ponto é a relação dele com os líderes de outras doutrinas (titthiya). O ensino do Buddha é simplesmente um dentre outros de numerosas escolas de doutrina de seu tempo. Hoje no Sião (Thailândia), a palavra “titthiya” (pronunciada em thailandês como “dirati”) é uma palavra suja que significa heresia ou pagão. Buddhadasa Bikkhu enfatiza que no tempo do Buddha o uso dessa palavra não implicava qualquer insulto ou discriminação. A atitude do Buddha com respeito a outros líderes religiosos nunca foi de afronta. Penso que seja importante estudar o modo como o Buddha relacionava-se com outras comunidades religiosas, isto é, sem qualquer hostilidade e nenhum tipo de agressão verbal quando dialogava com elas. Ele falava apenas sobre o que pensava e em que ponto havia diferenças. Um buddhista deveria aprender e seguir seu exemplo.

Em seguida, o livro examina o que o Buddha tenciona dizer ao se referir a ‘todos os seres’. Todos os seres aqui incluem árvores, florestas, animais, não humanos e deidades. Buddhadasa afirma claramente aquela compaixão do Buddha como ilimitada, sem qualquer exceção.

Buddhadasa menciona que a história da vida do Buddha tem dois aspectos: o físico e o espiritual. De acordo com ele, a história ‘real’ da vida do Buddha cobre somente doze horas do tempo total. São doze horas, das 18:00h até às 04:00h, antes de atingir Nibbana.

A maioria dos livros sobre a vida do Buddha foca em suas características físicas. Entretanto Buddhadasa mostra que aquilo que é mais crucial são, em oposição, as características espirituais, ou seja, a mente libertada, o vazio do ego ou sunyata. É óbvio que Buddhadasa tenta acentuar o lado abstrato. E a característica abstrata não se limita a qualquer pessoa em particular. Ou seja, quem quer que assimile tais características pode se tornar um Buddha. E tal característica também é conhecida como “Buddha Gabha”.

A próxima questão é o que o Buddha relata sobre seus parentes. O Buddha faz a colocação de que são quatro os tipos de parentes: parentes por sangue, por familiaridade, através de trabalho e por natureza. O último implica que nós somos parentes porque todos compartilhamos da natureza do nascimento, envelhecimento, decadência e morte.

O autor cita uma história do rei Bimbisara. Quando o plano do príncipe Ajatasatru e do monge superior Devadata para assassinar o rei falha, o rei discute o assunto com os seus ministros. O primeiro grupo de ministros aconselha-o a executar o príncipe, o monge superior e seus seguidores. O segundo grupo sugere executar somente o príncipe e o monge superior. O terceiro grupo não sugere nenhuma execução. O que o rei ordena é destituir a nobreza do primeiro grupo, rebaixar o título do segundo grupo e promover o terceiro grupo. Isto é digno de nota. Pelo senso comum, o assassinato deve ser retribuído com a morte. Mas o rei já havia atingido um nível básico de iluminação, praticando o perdão e até mesmo punindo aqueles que o aconselharam a adotar a sentença de morte. Sua resposta ilustra bem uma atitude buddhista com relação àqueles que tentam nos prejudicar.

Existe uma variedade de histórias que descrevem a relação do Buddha com as pessoas comuns. Uma pequena história conta sobre uma criança que quer dar alguma coisa ao Buddha. Não tendo nada, ele verte areia em sua tigela. O que o Buddha aceita.

Perto do fim do livro, Buddhadasa diz que o Buddha não é nada para nós. Suponho que ele diz isto para estremecer o nosso apego e nos fazer entender a realidade. Ele argumenta que a ideia de ser esta ou aquela coisa reflete o apego. Uma vez que a mente é liberta ela se sentirá não sendo coisa alguma.

Há um sutta interessante que ilustra outra abordagem do Buddha. É o Jora Sutta (“Sutta ao Saquedor”). Nele, o Buddha ensina que para saqueadores serem prósperos, eles não deveriam cometer nenhum dano àqueles que não possam reagir, nem às mulheres e meninas; que não deveriam saquear os monásticos e o tesouro estatal, nem roubar tudo mas, sim, deixem alguma coisa para o dono; que não deveriam saquear dentro da própria vizinhança; que deveriam ser sábios nas economias e acumular um pouco de mérito. É notável como o Buddha emprega os meios hábeis ao ensinar os saqueadores. Se lhes dissesse para não roubar, eles não escutariam. Ao contrário, o conselho do Buddha é no sentido de reduzir a violência e ajudá-los indiretamente, sugerindo, por exemplo, economizar, o que é mais aceitável para eles. O Buddha entende sua audiência e sabe como aproximar-se dela.

Como, por nossa vez, poderíamos aplicar a metodologia do Buddha, por exemplo, ao lidar com corporações farmacêuticas multinacionais? Se desejarmos penetrar em seus corações, precisaremos penetrar em seu lado meritório. Se apenas as repreendermos, elas criarão uma parede contra nós. Deveríamos encorajá-las para que fizessem coisas boas, como produzir medicamentos aos quais os pobres tenham acesso. Ao mesmo tempo, no caso em que há estímulo ao consumo desnecessário de medicamentos, precisamos criticá-las por suas táticas abusivas como o excesso de publicidade.

A algumas perguntas, o Buddha não responde. As perguntas feitas só por curiosidade, perguntas sobre metafísica e perguntas que não são benéficas para a obtenção do Nibbana.

O caminho da Buddha é holístico. Ele vê a pessoa como um composto tríplice: corpo, coração e sabedoria. Para o corpo, ele ensina sila para relações e comportamento normais, inclusive consumo e estilo de vida. Para o coração, ele ensina qualidades do coração como compaixão, perdão, etc., que também manifestam-se em comportamento e relações. Para a sabedoria, ele dá muitos ensinamentos de Dhamma profundos como o trilakhana, etc.

No ensino do buddhismo, professores ou monges podem enfatizar só um aspecto. Por exemplo, eles podem enfocar a meditação, mas ignorar a sabedoria, o consumo atento ou o estilo de vida simples. Ensinamentos buddhistas para um desenvolvimento completo e para seguir o exemplo do Buddha devem ser do modo holístico entre a comunidade de bons amigos.

© 2006 tradução de Jorge Luiz Ricardo Furtado, para a Comunidade Nalanda,
revisão: Marilaine Lopes
https://buddhadasa.nalanda.org.br