À procura daquele esquivo senso de desapego…

por Thanong Khanthong, The Nation, May 26, 2006

Bangkok, Tailândia — 27 de maio marcará o centenário de nascimento de um dos mais veneráveis monges buddhistas da Tailândia – Buddhadasa Bhikkhu, que morreu em 1993. Seus ensinamentos sobre o Buddhismo, entretanto, ainda têm imensa influência sobre os intelectuais tailandeses e buddhistas em geral, os quais se esforçam para captar a essência do Buddhismo em sua forma mais pura.

Lembro-me claramente de meu primeiro e único encontro com Buddhadasa. Há quase 20 anos, eu acompanhei um pequeno grupo de pessoas até Surat Thani, onde Buddhadasa fundou o seu Suan Mokkh em 1932, aos 23 anos de idade. Suan Mokkh é um dos numerosos “wat pa”, ou templos na selva, na Tailândia, excluídos de todas as tentações mundanas, de forma que monges e leigos buddhistas possam concentrar-se inteiramente no aprendizado e busca do caminho da salvação, como detalhado por nosso Mestre Buddha. Ficou claro, desde o primeiro instante, que Buddhadasa estava determinado a aprender e descobrir o buddhismo a seu próprio modo.

Chegamos tarde da noite a Suan Mokkh e fomos levados a uma das casinhas de madeira para descansar. Frugalidade era o modus vivendis ali. Verdes árvores se espalhavam por todo o lugar. Fomos instruídos a nos levantar muito cedo de manhã para ouvir os ensinamentos de Buddhadasa e discutir com ele quaisquer assuntos concernentes ao buddhismo. Estava um breu. Não ousamos olhar para fora da janela nem nos venturamos a sair, por medo de divisar fantasmas.

Na manhã seguinte, aproximadamente às cinco horas da manhã, fomos acordados e levados para ver Buddhadasa. Seu alojamento aparentava também simplicidade e frugalidade, sem nenhuma decoração. Sentamo-nos ao chão, do lado de fora, e não muito tempo depois ele apareceu, corpulento e austero, munido de seus óculos pretos espessos. Então ele se acomodou confortavelmente numa cadeira de mármore e começou a nos cumprimentar, casualmente. Não consigo me lembrar de toda a conversa aquele dia, mas recordo-me de ter-lhe feito uma pergunta.

“Se todos nos esforçamos para alcançar a salvação, então como devemos tratar as obras primas produzidas por gênios como Mozart e Beethoven?”, perguntei.

Buddhadasa replicou: “As artes são, meramente, invenções mundanas de seres humanos.” Não me lembro o que ele disse além dessa sentença, mas sua maneira de ser parecia muito desapegada de todos nós.

Tenho que confessar que, naquele momento, fiquei meio desapontado com a sua resposta. Na época, eu achava que não era característico do buddhismo repudiar as maiores realizações artísticas da humanidade. Bach compôs música sacra maravilhosa para celebrar Jesus Cristo. Da mesma forma, há muitas incríveis peças de arte buddhistas, retratando a vida do Mestre Buddha.

Eu não poderia ter entendido àquela época que estávamos falando de assuntos diversos – do universal e do particular. Ele era um monge iluminado, consciente da natureza transitória do mundo e desapegado de todos os desejos mundanos ao ponto da completa negação de si mesmo. Qualquer assunto, cujo foco não fosse o término do sofrimento, ou o esforço para se alcançar a verdade última era de importância secundária, ou representava, simplesmente, a manifestação de desejos mundanos.

Sem dúvida alguma, Buddhadasa foi um monge reformista. Ele procurou expor a essência do buddhismo, seguindo estritamente as escrituras do Buddha e desfazendo-se de todo rito ou ritual. Ele chegou à conclusão simples de que a salvação do sofrimento encontra-se no coração do buddhismo. Qualquer coisa para além desse objetivo singular de alcançar a salvação do sofrimento era irrelevante.

Ele descobriu que o Mestre Buddha desencorajava qualquer assunto que inibisse a saga de alcançar a salvação. Por exemplo, perguntava-se, freqüentemente, ao Mestre Buddha aonde os seres humanos iam após a morte. Eles iriam para o céu ou para o inferno? O Mestre Buddha tratava desses assuntos como irrelevantes e concentrava-se em ensinar os fundamentos da cessação do sofrimento.

Buddhadasa tentou seguir os passos do Mestre Buddha, indo direto à essência do buddhismo sem o auxílio de nenhum dos rituais. Ele propôs a famosa doutrina do “mim/meu” (“tua ku, khong ku”). Todo sofrimento humano começa com nossa concepção errônea ou ignorância a respeito do ‘eu’. Presumimos que o ‘eu/self’ existe. Por isso nos sentimos alegres quando conseguimos o que queremos. Nos sentimos tristes quando nos separamos de nossos amados ou quando não conseguimos o que queremos. Todos os nossos desejos são criados pela ignorância do ‘eu’, que reage aos sentidos. Mas, na verdade, não há tal coisa como o “self” (eu), que é parte do mundo corpóreo que está em constante estado de fluxo. Não há nada permanente neste universo.

Buddhadasa explicou que se conseguirmos superar a programação mental mim/meu, poderemos então sair fora do ciclo de sofrimento. Podemos realizar a iluminação a qualquer momento do tempo – a todo minuto, a todo segundo do dia – se abordarmos o mundo como ele é, sem nenhum envolvimento do ‘eu’.

Porque Buddhadasa negava todos os ritos e rituais associados ao buddhismo, ele não era popular junto ao povo em geral. A maioria dos tailandeses amontoa-se perto de monges famosos para obter bençãos para suas vidas. Eles gostam de ter água benta borrifada sobre suas cabeças ou ganhar amuletos do Buddha, de monges famosos, para incrementar sua sorte (“duang”) ou recuperar-se de seus infortúnios. Eles praticam ações meritórias porque acreditam que viverão melhor na próxima vida.

Ao celebrarmos a vida de Buddhadasa, devemos encontrar tempo para voltar a ler um de seus muitos livros sobre a doutrina mim-meu. Se pudéssemos praticar metade do que Buddhadasa nos ensinou, os thailandeses levariam vidas mais significativas, livres da hostilidade, tal qual a estamos experimentando agora com a polarização política atual.

© 2006 tradução de Rosana Lucas, para a Comunidade Nalanda,

https://buddhadasa.nalanda.org.br